Anatomia
de um jogo: Bayer Leverkusen-Benfica, 4-4
Um
empate épico que os benfiquistas festejam como se fosse uma vitória.
Entre o «Verão Quente», que colocou Paulo Sousa e Pacheco em
Alvalade e deixou João Pinto a meio caminho, ainda a tempo de ser resgatado por
Jorge de Brito – a direção sairia em janeiro, desgastada, tendo assumido a
presidência Manuel Damásio –, e os 3-6 mágicos em Alvalade, que valeram o
título de campeão nacional, o Benfica teve no Ulrich-Haberland de Leverkusen,
um dos pontos mais altos de toda a sua história europeia.
O empate, louco, a quatro golos, soube como poucas vitórias,
depois de duas reviravoltas perante um dos mais cotados clubes alemães, em fase
de afirmação nas provas continentais, e que contava com o veterano Bernd
Schuster, e com os internacionais Andreas Thom e der Schwatte (o «mulato»,
devido à sua aparência mediterrânea) Ulf Kirsten como principais figuras.
A 15 de março de 1994, a tentar resistir a um dos anos mais
difíceis da sua história, o Benfica chegava à Alemanha depois de um 1-1
conseguido por milagre na Luz, arrancado a fórceps pela vontade de Paneira e
Isaías. Mais objetivos, os alemães tinham aguentado a pressão do rival, feito o
seu golo, aos 65 minutos, por Markus Happe – de cabeça, depois de um canto da
esquerda de Schuster – e resistido até ao último momento, em que, finalmente,
surgiu o empate. Apesar do desalento desses últimos segundos, os germânicos
saíam em vantagem para o seu estádio, onde, já poucos esperavam um golpe de asa
das águias.
No segundo jogo desses quartos de final da Taça das Taças,
só Toni, os jogadores e os emigrantes portugueses, que dividiam os 20 mil
lugares do estádio, acreditavam. O Benfica precisava de golos para se
qualificar e o número cresceria consoante os que consentisse. Ninguém duvidada
do tamanho da montanha que era necessário escalar. E esse não era o único
obstáculo: Mozer, que vira amarelo na Luz, e Veloso, lesionado, não jogavam.
Ficara em Lisboa também Ailton, o único reforço de um ano de vacas magras numa
equipa que até perdera o seu herói do Jamor, de meses antes, para o Marselha.
Paulo Futre, o grande responsável por o Benfica estar na Taça das Taças (5-2 ao
Boavista) vários anos depois da última presença, apenas ficara uma época e
saíra para mais uma aventura fora de portas. Isaías, Schwarz e Kulkov entravam
diretamente para o onze.
Famalicão
talismã
Os encarnados tinham pela frente um adversário à altura,
depois das eliminações mais ou menos tranquilas dos polacos do Katowice (1-0 e
1-1) e dos búlgaros do CSKA Sófia (3-1 e 1-3). E o 1-1 da Luz esfriara e muito
o alento da equipa. Tanto que o Benfica repetiria o resultado nos Barreiros,
frente ao Marítimo do inevitável Heitor (golo inaugural aos 53 minutos), apenas
porque foi salvo por uma bomba de João Vieira Pinto. Seguir-se-ia, no entanto,
um novo despertar nessa época fértil em histórias. Visitaria a Luz o Famalicão
do azarado Celestino (sim, o dos dois autogolos) e depois do 1-5 da primeira
volta os minhotos iriam para casa com mais oito golos na bagagem. A equipa de
Toni parecia recuperada, pelo menos emocionalmente, para o que aí vinha.
Para o embate naquele que é hoje o Bay Arena, até as
estrelas se tinham alinhado na altura da escolha do árbitro. O escocês James
McCluskey dirigiu, com mestria, um dos jogos mais extenuantes de que há
memória. Um único amarelo, à passagem dos 18 minutos, mostrado ao líbero romeno
Lupescu, por derrube a Isaías, foi a única vez que o juiz levou a mão ao bolso
nesses 90 minutos de choque, luta, raça e instabilidade emocional. Os jogadores
foram um exemplo de fair play em todos os outros momentos.
Não ter
medo da arrogância
O Benfica entrou desinibido, era preciso marcar e não havia
tempo a perder. Toni apostou no ataque. «Na conversa que tivemos antes ficou
explícito aquilo que queria que eles transportassem para o jogo. Era preciso
não ter medo de um povo arrogante como o alemão, teríamos de jogar desinibidos
e apresentar uma dinâmica de ataque. Só tínhamos oportunidades de passar se
marcássemos», diria o treinador, no final, à RTP.
O encontro começava com uma bomba de Isaías e, pouco depois,
houve mais um remate fraco de Rui Costa. Em ambas as ocasiões, Heinen respondia
sem sobressaltos. Os alemães reagiam. Aos 13 minutos, é Schwarz quem, de
carrinho, evita a primeira oportunidade do homem que era comparado então a Gerd
Muller: o sempre perigoso Ulf Kirsten. Mas continuava a ser o Benfica a mandar.
O «touro» Iuran tinha aquilo que o jogo precisava e, com 15 minutos de jogo,
descobriu Isaías à entrada da área para mais uma intervenção do guarda-redes
alemão. Por cima da trave…
O erro
de Neno entre tantas grandes defesas
Neno começava também ele a responder. Aos 23 minutos,
William perdeu a bola e Thom, um dos melhores em campo, obrigou o português à
primeira grande defesa. Canto. O aviso não era para ser negligenciado, mas de
certa maneira foi. Thom trabalhou na direita e cruzou de trivela, Neno voou
atrasado na direção de Kirsten, que lhe cabeceou a bola por cima. Que azar!
O Benfica continuava a precisar de golos, agora de dois para
se qualificar. Com 1-0, ninguém no
conjunto português baixava os braços. A passe de um Rui Costa em crescendo,
Iuran obrigava Heinen a grande defesa. Já Lupescu assumia na perfeição o seu
papel de líbero e também construía. Kirsten tinha novo duelo com Neno, que
voltava a defender. E Thom continuava em grande. Depois de um cruzamento da
direita de Schuster, o internacional alemão deixou Abel Xavier para trás com
uma finta de corpo e atirou ao poste.
O susto passara. Rui Costa puxava os cordelinhos e Isaías
cruzava da direita para o desvio de Paneira na cara de Heinen, aos 36 minutos.
Seguro mais uma vez o alemão. Sete minutos depois, Neno voltaria a brilhar,
fazendo esquecer o erro no primeiro golo. Primeiro Hapal, depois Thom, sempre
com o guarda-redes a corresponder às exigências. Chegaria a seguir o intervalo.
Ufa! E a pergunta inevitável: será que estes jogadores iriam aguentar uma
segunda parte como aquela?
Mas
ainda seria pior (ou melhor, dependendo do ponto de vista)
Anos depois, à Benfica TV, Schwarz também se riria dessa
partida. «Foi um jogo de loucos mesmo. O Benfica faz muitos jogos desses e
quase todas as vezes sai bem.» O que se iria passar a seguir seria
inacreditável. Abel Xavier ensaiaria o seu golo, num livre, aos 48 minutos.
Heinen não dava mostras de vacilar, mas três minutos depois tremia mesmo pela
primeira vez: Isaías rematou, o keeper defendeu para a frente e Rui Costa,
primeiro, e Schwarz, depois, não conseguiram fazer uma recarga bem sucedida com
o peso de tanta ansiedade nas pernas.
O primeiro sinal do Bayer no segundo tempo surgiria aos 57 minutos,
com Kirsten a chegar tarde a um cruzamento da direita. E, mais uma vez, os
alemães avisavam antes de marcar. No minuto seguinte, Thom (quem mais?) veria a
desmarcação do já lento Schuster entre Xavier e Hélder (ligeiramente adiantado
à sua linha de defesa, a meio caminho de Thom) e o talento faria o resto.
Apesar da festa alemã, o golo para o Benfica não significava grande coisa:
continuava a precisar de dois para seguir em frente.
«Tou,
Rui, tou!»
E, depois de tantos remates e tanto tempo a tentar, os golos
portugueses viriam separados por segundos. Marcariam dois golos em dois
minutos. Na jogada de resposta ao remate vitorioso de Schuster, ganharam canto.
Paneira marcou curto para Iuran, o russo fletiu para o meio e passou a Rui
Costa. Rodeado por alemães, aquele que poucos meses depois em Itália chamariam
fantasista ouviu um grito atrás de si. «Tou, tou!» «O Abel Xavier pediu a bola
nas minhas costas, toquei de calcanhar e ele marcou um golão que nos relançou
imediatamente», diria Rui Costa no livro «Sport Europa e Benfica», lançado pelo
Maisfutebol e pela PrimeBooks. E no minuto seguinte, em novo canto, o mesmo Rui
Costa foi chamado a marcar um canto da direita. Fantástica a movimentação de
Abel Xavier no primeiro poste, a arrastar dois alemães, e João Pinto a surgir
atrás, do nada, para o 2-2 tão desejado.
Dragoslav Stepanovic, o treinador sérvio do Bayer, estava
obrigado a mexer e tinha duas armas importantes no banco. Aos 66 minutos, fez
entrar o brasileiro Paulo Sérgio para a esquerda e Fischer para ajudar na
frente, a partir da direita.
Rui
Costa, a terceira assistência
Neno continuava atento e, aos 75 minutos, fez a defesa da
noite, a cabeceamento de Fischer. Schuster era o marcador de serviço e cada
bola parada uma aflição. Aos 77, após o sexto canto consecutivo por parte do
conjunto germânico, Rui Costa conduziu o contra-ataque pela esquerda, esperando
pelo momento certo para entregar a Kulkov. O russo aguentou, aguentou, e
rematou para o 2-3. Toni ficava a falar sozinho em frente ao banco. Parecia
decidido, mas depois de tanta emoção, eram precisas cautelas suplementares.
O Bayer também não se ficava. Aos 79, Paulo Sérgio cruzou da
esquerda, e Kirsten voltou a ser o bombardeiro do costume, de cabeça. Neno nada
podia fazer, Abel Xavier, desesperado, abria os braços. Mesmo assim, ainda
estavam em vantagem. Por pouco tempo. No minuto seguinte, os germânicos
ganharam um canto. Schuster outra vez, a bola a cair no primeiro poste, Fischer
desviou, Hapal emendou. 4-3, os alemães voltavam a ficar mais perto das
meias-finais.
Há uma frase que resume esse jogo», lembra Rui Costa «O
treinador do Bayer disse que se eles tivessem marcado sete golos nós
marcaríamos outros sete, e é verdade. A certa altura já sentíamos que tinha de
acontecer mais qualquer coisa, não íamos ficar pelo caminho assim.» Também
Hélder, concorda, ainda no «Sport Europa e Benfica»: «Quando fizemos o terceiro
sentimos que era impossível não passar.»
O 4-4,
que reapareceria em Braga em maio
Já ninguém se lembra, mas é Kulkov que, aos 85 minutos,
inicia e fecha a jogada que dá o 4-4 e o apuramento. O russo colocou a bola em
João Pinto, que fintou dois jogadores e abriu nas costas de Lupescu, de novo
para o goleador improvável do encontro. Uma jogada que seria repetida na festa
do título em Braga, palco emprestado ao Gil Vicente, mais de dois meses depois
e duas jornadas antes do final do campeonato. Também João Pinto, também o corte
nas costas do rival por parte de Kulkov, a fechar a festa (0-3).
No Ulrich-Haberland, Toni ainda tinha os seus trunfos.
Depois do 4-4, havia duas substituições para fazer e queimar tempo. Hernâni
rendeu Rui Costa aos 85 e Rui Águas Iuran aos 89. O jogo acabaria pouco depois,
e a festa seria total dos portugueses no relvado.
A
festa:
É pá, o que é que eu posso dizer agora em cima…? Só posso
dedicar a estes milhares de adeptos que vieram cá, aos que estão lá e aos meus
colegas, que por um motivo ou outro não puderam participar, e aos nossos
familiares, que acreditam em nós… Esta vitória vai para eles todos», diria
Paneira, ainda a quente, à reportagem da RTP. Também João Pinto era o espelho
da satisfação: «São jogos que dificilmente esquecemos. Não é a passagem à
eliminatória que está em causa, mas sim o trabalho e o profissionalismo que
tivemos aqui, com os milhares de adeptos que vieram cá e aqueles que por um
motivo ou outro não puderam vir, mas estavam do nosso lado.»
Sonho
acabou em Parma
Nas meias-finais, o Parma. Outra equipa forte do futebol
europeu. Na Luz, o Benfica venceria por 2-1. Isaías inaugurou o marcador, aos
sete minutos, mas os italianos empatariam por Gianfranco Zola, aos 13. Seria
Rui Costa a assinar, aos 60, o golo da vantagem magra levada para o Ennio
Tardini. Em Itália, o holandês Mario van der Ende expulsou Mozer ainda na
primeira parte, e os encarnados resistiram até aos 75 minutos, quando um
cabeceamento feliz do argentino Sensini traiu Neno pela única vez.
A
loucura de Alvalade
A 14 de maio, praticamente dois meses depois de Leverkusen,
o Benfica embalaria para outro jogo mágico da sua história. O célebre 3-6, com
João Pinto a fazer miséria da defesa do Sporting e Carlos Queiroz a ficar
marcado para sempre pela sua decisão de recuar Paulo Sousa para
lateral-esquerdo, para o lugar do substituído Paulo Torres. Os encarnados
ficariam com três pontos de avanço e rumariam ao 30º campeonato. Esse título
tornar-se-ia um oásis num deserto de 11 anos: sete faixas de campeão para o FC
Porto, duas para o Sporting e uma para o Boavista.
Mas, depois de ter perdido a Supertaça para o FC Porto e
sido eliminado nos oitavos de final da Taça pelo Belenenses, terá sido nesse
dia 15 de março, na fria Leverkusen, que os encarnados terão encontrado a alma
que os faria reagir a resultados tão confrangedores como a derrota em Vidal
Pinheiro (1-0, golo de Sá Pinto, já contratado pelo Sporting) ou o empate em
casa frente ao Estrela da Amadora (1-1), que abriria a porta a uma
ultrapassagem do leão em caso de vitória no dérbi, em Alvalade, no jogo
seguinte.
Com o fim da festa, viria a revolução. Sairia Toni e a
equipa campeã acabaria desmantelada. Rui Costa foi para a Fiorentina, Schwarz,
Kulkov, Iuran, Isaías, Paneira, Rui Águas, Veloso e Silvino deixaram a Luz.
Artur Jorge era o novo homem do leme.