Manuel Sérgio - A grande revolução de
Jesus ou o mundo que o desporto não tem
Se nem só de pão
vive o homem, também não se pode viver sem pão. Sem um certo ter, não se pode
ser. Os bens materiais só são desprezíveis quando se erguem como obstáculo a
uma ordem social, económica, espiritual, onde todos nos sintamos irmãos, ou
melhor: onde todos nos sintamos com iguais oportunidades.
Podemos por isso
afirmar, sem receio, que pode construir-se uma sociedade moldada nos princípios
do Evangelho. Que o mesmo é dizer: não se transforma uma sociedade unicamente
por meio de decretos e de leis, ou pelo carisma de líderes incontestados. De
uma revolução política, fundamentada nas melhores intenções, podem nascer
invejas, ódios incontidos, ambições insatisfeitas. A grande revolução de Jesus
transforma o social e o político, porque antes nos transformou a cada um de
nós. Interrogam-se os fariseus sobre o reino de Deus e Jesus responde: “O reino
de Deus não chega de uma maneira que impressiona a vista. O reino de Deus está
dentro de vós”.
Porque desejava
fazer um mundo novo, Ele trabalhou e ofereceu a sua própria vida para que
nascesse também um ser humano novo. Quando os discípulos lhe perguntaram:
Mestre, de nós qual será o primeiro no reino dos céus? Jesus sentou-se, reuniu
os doze à sua volta e disse-lhes: “Se algum quiser ser o primeiro, que seja
agora o último e esteja ao serviço de todos”. E, chamando uma criancinha,
envolveu-a carinhosamente num abraço e ensinou: “Em verdade vos digo que, se
não vos tornardes como esta criança, não entrareis no reino dos céus”. Jesus é
fator de progresso material, natural, porque é também fator de progresso moral,
espiritual. De muitas revoluções surgiram (como o micróbio do fruto apodrecido)
figuras hediondas, como Hitler, como Estaline, como Pol Pot e tantos mais.
Jesus é bem
explícito, a este respeito: Ele chamou aos discípulos pescadores de homens e
não pescadores de almas. E, quando reza ao Pai, suplica: “Não Vos peço que os
retireis do mundo, mas que os preserveis do mal”. Por isso, recomenda que se
pague o tributo a César, sacia multidões esfomeadas, vai às núpcias de Caná,
manifesta um carinho especial por Maria Madalena, etc., etc. Trata-se, de
facto, de um cidadão exemplar, mas porque se fundamenta em princípios
perfeitamente revolucionários: Bem-aventurados os pobres de espírito (ou seja,
os modestos, os humildes) porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados os
que choram, porque serão consolados; bem-aventurados os que pacificam, porque
serão chamados filhos de Deus; bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados; bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão a misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a
Deus; bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da Justiça, porque
deles é o Reino dos Céus. E chega mesmo a dizer: “ Se trouxerdes a vossa oferta
ao altar e aí vos lembrardes que o vosso irmão tem qualquer coisa contra vós,
deixai ali a oferta, ide reconciliar-vos primeiro com o vosso irmão e depois
voltai e oferecei a vossa oferta”. Em Jesus, há uma seiva espiritual que
alimenta e percorre todo o Seu comportamento, onde brilham a solidariedade e a
justiça. São um logro as revoluções sociais e políticas lideradas por ditadores,
por violentos, por hipócritas, mesmo que pronunciem palavras encantadoras, ou
se afirmem enviados por Deus. Jesus avisa: “Nem todo o que diz Senhor! Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai”.
A grande
revolução de Jesus é esta: não há na sua doutrina qualquer dualismo (razão-fé,
ciência-religião, natureza-cultura, imanência-transcendência,
espiritualismo-materialismo, rico-pobre, branco-preto, senhor-servo,
indivíduo-pessoa, sagrado-profano): Ele dá sentido à evolução, ao processo
histórico – o amor de Deus confunde-se com o amor do próximo! E, porque vês
Deus, no teu próximo, sê então um revolucionário. Ocorre-me, neste passo, a
frase célebre de Agostinho de Hipona: “Ama e faz o que quiseres”. Com Jesus,
nasce um mundo novo e um homem novo. Jesus tudo adotou, retificou, uniu,
completou, Ele corresponde aos postulados mais universais e profundos que
animam o ser humano. N’Ele, a dimensão social e a dimensão espiritual
confundem-se na complexidade humana! A grande revolução de Jesus é esta: a vida
tem sentido, sempre que se ama a Deus no próximo, sempre que se descobre a
transcendência na imanência. Com isto, não nego a necessidade da meditação e da
oração. Digo tão-só que, sem obras, a fé é morta. Foi das primeiras coisas que
aprendi, na disciplina de História da Cultura Clássica, na Faculdade de Letras
de Lisboa: a cultura ocidental radica na filosofia grega, no espírito jurídico
latino e na mensagem judaico-cristã (eu gosto de acrescentar-lhes o criticismo
de Kant e ainda o dos grandes nomes do Iluminismo).
Mas, no lugar da
religião do indivíduo, é preciso apostar na religião da comunidade, que não
subalterniza a realidade e o valor do indivíduo, mas o considera essencialmente
relativo aos outros e à sociedade. No plano dos valores, portanto, requer-se a
passagem de uma ética individualista a uma ética comunitária, onde todos são
corresponsáveis. Em Jesus, não há só o proximus, o amigo, o familiar, mas
principalmente o socius, na criação de instituições mais solidárias, mais
justas. Jesus não lutou por uma religião dos espíritos, mas por uma religião
dos homens, sabendo que, se uma revolução social não chega para criar o “homem
novo”, pode criar condições ao seu nascimento. A religião de Jesus não sofre de
absentismo e conformismo. Ele escolheu a religião do afrontamento contra os
privilégios, contra a violência dos poderosos, contra as injustiças do sistema
dominante. Por isso, foi crucificado. Por isso, aqui deixo um resumo das minhas
meditações, em muitos momentos da minha vida. Jesus continua (continuará) um
grande contemporâneo. Estou a ouvir alguns dos meus habituais leitores a
levantarem, perplexos, uma interrogação: “Mas que tem tudo isto a ver com o
Desporto?”. É indubitável que a mensagem de Jesus tem em vista um mundo novo –
o mundo que eu desejo ao desporto, hoje e sempre! Aliás, permitam-me a
pergunta: se este meu artigo nada tem a ver com Desporto, concorre a um melhor
desporto um clubismo faccioso e o racismo que ainda enodoa os grandes estádios
da alta competição desportiva?
Não esqueçamos
que o Desporto tem como objetivo primeiro a concretização de valores que a
cultura ocidental proclama como seus – aqueles valores por que Jesus deu a
própria vida. Um dos primeiros criadores do desporto moderno foi o cónego
inglês Thomas Arnold, que viveu na primeira metade do século XIX. Aos que,
entre paroxismos e crispações, caluniam os árbitros, detestam os clubes
adversários e só encontram defeitos e limitações... nos outros – seria bom que,
uma vez por outra, estudassem a História do Desporto. E peço licença para
aconselhar a leitura do livro “de la GYMNASTIQUE aux SPORTS MODERNES” (Vrin,
Paris). É a melhor História do Desporto que eu conheço.
Manuel Sérgio é
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética
no Desporto