quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Rui Dias: Gáitan inventa com a cabeça os milagres que executa com os pés

Rui Dias: Gáitan inventa com a cabeça os milagres que executa com os pés

Ainda precisa de calibrar inteligência lógica e inteligência criativa; ser o funcionário que cumpre regras do senso comum e o génio que desestabiliza a rotina. Mas poucos como ele alimentam o futebol como jogo e espetáculo

1. Defende a bola como um tesouro precioso; o corpo utiliza-o para escapar à fúria de carrascos sem pudor mas também para contar mentiras aos adversários; inventa com a cabeça os milagres que executa com os pés, sinal de que há nele coragem física a enfrentar os choques e força moral para querer sempre a bola e tentá-los. Gaitán possui todas as matérias-primas necessárias para tirar gente do caminho: domínio, arranque, velocidade, travagem e saída para onde manda o instinto. É um jogador deslumbrante, que faz cada vez melhor o que deve nas zonas neutras e ilumina a manobra ofensiva, em terrenos e circunstâncias onde espaços e companheiros, existindo, se escondem e até desaparecem em milésimos de segundo.

2. Como passa normalmente a primeira barreira de pressão, conquista vasto horizonte pela frente, que lhe permite expressar a técnica sublime e a infindável capacidade para inventar. Costuma jogar na esquerda mas também pode fazê-lo no meio, assumindo papel de intermediário entre a equipa e o ponta-de-lança; entre o jogo e o golo. Na época passada, em grande parte dos jogos europeus fora da Luz, ocupou essa zona vazia quando a equipa atua com dois avançados e que, em 2013/14, já foi preenchida, em nome de equilíbrio e segurança, juntando Ruben Amorim a Matic e Enzo. Nico não tem o sentido estratégico dos grandes maestros mas por ser habilidoso, veloz e coordenado; por viver na permanente busca de espaços vazios e usufruir de quase todas as armas para fazer a diferença, no meio encontra mais panorama para tomar decisões mortíferas.

3. Aos 25 anos ainda peca por entregar-se a exercícios solitários condenados ao fracasso e pela menor generosidade no apoio defensivo. Mas quando põe tudo em pratos limpos, tira da cartola a iniciativa assombrosa com a bola colada ao pé esquerdo, o passe de morte ou o cruzamento perfeito, como se a glória estivesse, afinal, à distância de um estalar de dedos. Com confiança insolente nas suas capacidades, Gaitán é fabuloso a servir os especialistas do último toque, a alimentá-los expressando a qualidade que interfere no produto final da equipa e na melhoria de quem exerce na sua zona de ação. Na aproximação à baliza é impressionante o modo como vê analisa, decide e executa em centésimos de segundo, como se os quatro passos fossem apenas um.

4. No gráfico de produção no Benfica há demasiados altos e baixos que lhe têm atrasado a afirmação como estrela universal. Ao nível mais elevado, é difícil a vida de quem é regularmente recriminado na queda com os antónimos dos adjetivos que ouviu na escalada. Na quarta temporada com a águia ao peito, Gaitán é dos poucos elementos do plantel encarnado de quem Jorge Jesus ainda não extraiu, em continuidade, toda a excelência do futebol que tem para oferecer. Para se consolidar como um dos mais extraordinários futebolistas da Liga, dono de um pé esquerdo abençoado e senhor de ilimitada imaginação, precisa ainda de calibrar a inteligência lógica e a inteligência criativa; ser o funcionário que cumpre todas as regras do senso comum e o artista que agita e desestabiliza a rotina. Poucos como ele têm arte para alimentar o futebol como jogo e espetáculo. 

- Rui Dias, jornal Record, 20 de Novembro de 2013

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