Box-to-box: André Gomes, uma espécie de
Andrea
Onde se fala de Pirlo e da diferença que
vinte metros fazem no futebol
1. Carlo Mazzone
é uma verdadeira instituição do futebol italiano. Começou a ser treinador
quando o mundo ainda se assustava com a guerra fria e Eusébio ganhava a
primeira Bota de Ouro: no ano da graça de 1968.
Desde então
treinou durante mais de 35 anos e tornou-se o técnico com mais jogos de sempre
na liga italiana. Mas treinou sobretudo clubes pequenos.
Era no fundo um
Manuel Cajuda, mas mais ponderado.
2. Há uma frase
que li uma vez numa crónica de Miguel Esteves Cardoso e que gosto de repetir
com alguma frequência.
«Vale mais um
bom pedreiro do que um mau engenheiro e um bom jornalista do que um mau
escritor.»
Andrea Pirlo
nunca seria um mau número dez, aquele toque de bola aveludado não lho
permitiria, mas podia perfeitamente ser um dez regular apenas: recuou no
terreno e tornou-se um fantástico trinco. «O maior arquiteto que o futebol
italiano foi capaz de produzir desde Gianni Rivera», como disse alguém.
3. É nesta
altura que os pontos 1 e 2 desta crónica se cruzam para, como em qualquer conta
de somar, chegar ao número três.
Carlo Mazzone
nunca ganhou um título, mas conquistou um troféu mais importante do que isso.
Foi ele quem inventou Andrea Pirlo.
Pirlo cresceu
como número dez e, como todos os grandes génios, estreou-se no futebol
profissional com apenas 16 anos. Com a camisola do Brescia. Foi então
contratado pelo Inter, mas o futuro deixou de ser uma linha reta. Foi cedido
primeiro ao Reggina e depois ao Brescia, onde aprendera a jogar futebol.
No Brescia
conheceu Mazzone, que para início de conversa tinha dois problemas: contava com
Roberto Baggio para número dez e identificava em Pirlo falta de velocidade para
desequilibrar em espaços curtos.
Por isso foi
falar com o miúdo.
«Olha Pirlo, se
recuares um pouco a equipa terá mais bola, tu divertes-te mais e poderás
explorar todos os privilégios da tua qualidade técnica.»
No fundo tudo
girava em torno de dar-lhe espaço.
«Todas as bolas
têm de passar por ti e se os colegas não ta derem, vais lá tu mesmo e
roubas-lha.»
Pirlo começou
por responder com ceticismo, mas o treinador insistiu: iriam fazer a
experiência e depois logo se via. Nesta altura é desnecessário dizer que nunca
mais voltou a ser número dez: a adaptação tornou-se perfeita.
4. Quando vejo
André Gomes jogar, não posso deixar de me lembrar desta história. Tal como
Pirlo, André Gomes pode ser o que quiser: número oito, número seis ou até número
dez. Tem o toque aveludado dos craques.
A questão passa
por descobrir onde poderá ser mais feliz.
Um pouco como
Pirlo, André Gomes tem um problema: joga sempre no mesmo ritmo. Não tem mudança
de velocidade.
Por isso respira
melhor quando baixa no terreno e foge à marcação.
Foi impossível
para mim não reparar nisso quando o vi, por exemplo, partir de trás de André
Almeida no jogo com o V. Setúbal e construir o golo do Benfica.
André Gomes é um
jogador inteligente, que sabe ocupar os espaços e tem capacidade de pressão,
mas tem sobretudo toque de bola e passe.
A partir de
trás, com espaço para respirar, pode tornar-se um arquiteto: pode decidir
melhor entre tocar, abrir ou desmarcar. Como os trincos do futebol moderno, e
sobretudo em grandes equipas, têm de saber fazer.
Nunca será um
trinco de entregar a bola, será um trinco de pensar no jogo. É disso que se
trata: tirá-lo da pressão e dar-lhe espaço para construir. Olho para André
Gomes e vejo um arquiteto em potência.
Um jogador por
quem tem de passar todo o jogo: se e os colegas não lhe derem a bola, convém
que ele vá lá e lha roube.
«Box-to-box» é
um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol
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