sexta-feira, 9 de maio de 2014

Box-to-box: André Gomes, uma espécie de Andrea



Box-to-box: André Gomes, uma espécie de Andrea

Onde se fala de Pirlo e da diferença que vinte metros fazem no futebol

1. Carlo Mazzone é uma verdadeira instituição do futebol italiano. Começou a ser treinador quando o mundo ainda se assustava com a guerra fria e Eusébio ganhava a primeira Bota de Ouro: no ano da graça de 1968.

Desde então treinou durante mais de 35 anos e tornou-se o técnico com mais jogos de sempre na liga italiana. Mas treinou sobretudo clubes pequenos.

Era no fundo um Manuel Cajuda, mas mais ponderado.

2. Há uma frase que li uma vez numa crónica de Miguel Esteves Cardoso e que gosto de repetir com alguma frequência.

«Vale mais um bom pedreiro do que um mau engenheiro e um bom jornalista do que um mau escritor.»

Andrea Pirlo nunca seria um mau número dez, aquele toque de bola aveludado não lho permitiria, mas podia perfeitamente ser um dez regular apenas: recuou no terreno e tornou-se um fantástico trinco. «O maior arquiteto que o futebol italiano foi capaz de produzir desde Gianni Rivera», como disse alguém.

3. É nesta altura que os pontos 1 e 2 desta crónica se cruzam para, como em qualquer conta de somar, chegar ao número três.

Carlo Mazzone nunca ganhou um título, mas conquistou um troféu mais importante do que isso. Foi ele quem inventou Andrea Pirlo.

Pirlo cresceu como número dez e, como todos os grandes génios, estreou-se no futebol profissional com apenas 16 anos. Com a camisola do Brescia. Foi então contratado pelo Inter, mas o futuro deixou de ser uma linha reta. Foi cedido primeiro ao Reggina e depois ao Brescia, onde aprendera a jogar futebol.

No Brescia conheceu Mazzone, que para início de conversa tinha dois problemas: contava com Roberto Baggio para número dez e identificava em Pirlo falta de velocidade para desequilibrar em espaços curtos.

Por isso foi falar com o miúdo.

«Olha Pirlo, se recuares um pouco a equipa terá mais bola, tu divertes-te mais e poderás explorar todos os privilégios da tua qualidade técnica.»

No fundo tudo girava em torno de dar-lhe espaço.

«Todas as bolas têm de passar por ti e se os colegas não ta derem, vais lá tu mesmo e roubas-lha.»

Pirlo começou por responder com ceticismo, mas o treinador insistiu: iriam fazer a experiência e depois logo se via. Nesta altura é desnecessário dizer que nunca mais voltou a ser número dez: a adaptação tornou-se perfeita.

4. Quando vejo André Gomes jogar, não posso deixar de me lembrar desta história. Tal como Pirlo, André Gomes pode ser o que quiser: número oito, número seis ou até número dez. Tem o toque aveludado dos craques.

A questão passa por descobrir onde poderá ser mais feliz.

Um pouco como Pirlo, André Gomes tem um problema: joga sempre no mesmo ritmo. Não tem mudança de velocidade.

Por isso respira melhor quando baixa no terreno e foge à marcação.

Foi impossível para mim não reparar nisso quando o vi, por exemplo, partir de trás de André Almeida no jogo com o V. Setúbal e construir o golo do Benfica.

André Gomes é um jogador inteligente, que sabe ocupar os espaços e tem capacidade de pressão, mas tem sobretudo toque de bola e passe.

A partir de trás, com espaço para respirar, pode tornar-se um arquiteto: pode decidir melhor entre tocar, abrir ou desmarcar. Como os trincos do futebol moderno, e sobretudo em grandes equipas, têm de saber fazer.

Nunca será um trinco de entregar a bola, será um trinco de pensar no jogo. É disso que se trata: tirá-lo da pressão e dar-lhe espaço para construir. Olho para André Gomes e vejo um arquiteto em potência.

Um jogador por quem tem de passar todo o jogo: se e os colegas não lhe derem a bola, convém que ele vá lá e lha roube.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol

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